ONILÉ GANHA O GOVERNO DA TERRA
Onilé ilustação por Pedro Rafael para para o livro Mitologia dos Orixás |
Vivia trancada em casa de seu Pai e ninguém a via.
Quase nem se sabia de sua existência.
Quando os Orixás seus irmãos se reuniam no Palácio do grande pai
para as grandes audiências
em que Olodumare comunicava suas decisões,
Onilé fazia um buraco no chão e se escondia,
pois sabia que as reuniões sempre terminavam em festa,
Onilé não se sentia bem no meio dos outros.
Um dia o grande deus mandou seus arautos avisarem:
haveria uma grande reunião no palácio
e os orixás deveriam comparecer ricamente vestidos,
pois ele iria distribuir entre os filhos as riquezas do mundo
e depois haveria muita comida, música e dança.
Por todos os lugares os mensageiros gritaram essa ordem
e todos se prepararam com esmero para o grande acontecimento.
Quando chegou por fim o grande dia,
cada orixá dirigiu-se ao palácio na maior ostentação,
cada um mais belamente vestido que o outro,
pois este era o desejo de Olodumare.
Iemanjá chegou vestida com a espuma do mar,
e os braços ornados de pulseiras de algas marinhas
a cabeça cingida por um diadema de corais e pérolas,
o pescoço emoldurado por uma cascata de madrepérola.
Oxóssi escolheu uma túnica de ramos macios,
enfeitada de peles e plumas dos mais exóticos animais.
Ossaim vestiu-se com um manto de folhas perfumadas.
Ogum preferiu uma couraça de aço brilhante,
enfeitada com tenras folhas de palmeira.
Oxum escolheu cobrir-se de ouro,
trazendo nos cabelos as águas verdes dos rios.
As roupas de Oxumaré mostravam todas as cores,
trazendo nas mãos os pungos frescos da chuva.
Iansã escolheu para se vestir-se um sibilante vento
e adornou os cabelos com raios que colheu da tempestade.
Xangô não fez por menos e cobriu-se com o trovão.
Oxalá trazia o corpo envolto em fibras alvíssimas de algodão
e a testa ostentando uma nobre pena vermelha de papagaio.
E assim por diante.
Não houve quem não usasse toda a criatividade
para apresentar-se ao grande pai com a roupa mais bonita.
Nunca se vira antes tanta ostentação, tanta beleza, tanto luxo.
Cada orixá que chegava ao palácio de Olodumare
provocava um clamor de admiração,
que se ouvia por todas as terras existentes.
Os orixás encantaram o mundo com suas vestes.
Menos Onilé.
Onilé não se preocupou em vestir-se bem.
Onilé não se interessou por nada.
Onilé não se mostrou para ninguém.
Onilé recolheu-se a uma funda cova que cavou no chão.
Quando todos os orixás haviam chegado,
Olodumare mandou que fossem acomodados confortavelmente,
sentados em esteiras dispostas ao redor do trono.
Ele disse então à assembleia que todos que eram bem-vindos.
Que todos os filhos haviam cumprido seu desejo
e que estavam todos tão bonitos que ele não saberia
escolher qual seria o mais vistoso e belo.
Tinha todas as riquezas do mundo para dar a eles,
mas nem sabia como começar a distribuição.
Olorum fletiu por um bom tempo e disse
que seus próprios filhos tinham feito suas escolhas.
Ao escolherem o que achavam o melhor da natureza,
para com aquela riqueza se apresentar perante o pai,
eles mesmos já tinham feito a divisão do mundo.
Então Iemanjá ficava com o mar,
Oxum com o ouro e os rios.
A Oxóssi deu as matas e todos os seus bichos,
reservando as folhas para Ossaim.
Deu a Iansã o raio e a Xangô o trovão.
Fez Oxalá dono de tudo que é branco e puro,
de tudo o que é o princípio, deu-lhe a criação do homem.
Destinou a Oxumarê o arco-íris e a chuva.
A Ogum deu o ferro e tudo o que se faz com ele,
inclusive a guerra.
E assim por diante.
Confirmou Exu no cargo de mensageiro dos deuses,
pois nenhum outro era capaz de se movimentar como ele.
Mas como Exu se cobrira todo com búzios para a reunião,
e como búzios era dinheiro, Olodumare também dava a ele
o patronato dos mercados e o governo das trocas.
Olodumare deu assim a cada orixá um pedaço do mundo,
uma parte da natureza, um governo particular.
Dividiu de acordo com o goto de cada um.
E disse que a partir de então cada um seria o dono
e o governador daquela parte da natureza.
Assim, sempre que um humano tivesse alguma necessidade
relacionada com uma daquelas partes da natureza,
deveria pagar uma oferenda ao orixá que a possuísse.
Pagaria em oferendas de comida, bebida ou outra coisa
que fosse predileção do orixá.
Os orixás, que tudo tinham ouvido em silêncio,
começaram a comemorar, cantando e dançando de júbilo.
Era grande o alarido na corte, a festa começava.
Mas Olorum-Olodumare levantou-se e pediu silêncio,
pois a divisão do mundo ainda não estava concluída.
Disse que faltava ainda a mais importante das atribuições.
Que era preciso dar a um dos filhos o governo da Terra,
o mundo no qual os humanos viviam
e onde produziam as comidas, bebidas e tudo o mais
que deveriam ofertar aos orixás.
Disse que dava a Terra a quem se vestia da própria Terra.
Quem será?, perguntaram-se todos.
"Onilé", respondeu Oludumare.
"Onilé?", todos se espantaram.
Como, se ela nem se quer viera à grande reunião?
Nenhum dos presentes a vira até então.
Nenhum sequer notara sua ausência.
"Pois Onilé está entre nós", disse Olodumare,
e mandou que todos olhassem no fundo da cova,
onde se abrigava, vestida de terra, a discreta e recatada filha.
Ali estava Onilé, em sua roupa de terra.
Onilé, a que também foi chamada Ilé, o país, o planeta.
Olodumare disse que cada um que habitava a Terra
pagasse tributo a Onilé,
pois ela era a mãe de todos, o abrigo, a casa.
A humanidade não sobreviveria sem Onilé.
Afinal, onde ficava cada uma das riquezas
que Olodumare partilhara os filhos orixás?
"Tudo está na Terra, disse Oloduare.
"O mar, os rios, o ferro e o ouro,
os animais e as plantas, tudo" continuou.
"Até mesmo o ar e o vento, a chuva e o arco-íris,
tudo existe porque a Terra existe,
assim como as coisas criadas para controlar os homens
e os outros seres vivos que habitam o planeta,
como a vida, a saúde, a doença e mesmo a morte."
Pois então, que cada um pagasse o tributo a Onilé,
foi a sentença final de Olodumare.
Onilé, Orixá da Terra, receberia mais presentes que os outros.
Deveria ter oferendas dos vivos e dos mortes,
pois na Terra também repousam os corpos dos que já não vivem.
Onilé, também chamada Aiê, a Terra, deveria ser propiciada sempre,
para que o mundo dos humanos nunca fosse destruído.
Todos os presentes aplaudiram as palavras de Olodumare.
Todos os orixás aclamaram Onilé.
Todos os humanos propiciaram a mãe Terra.
E então Olodumare retirou-se do mundo para sempre
e deixou o governo de tudo por conta dos seus filhos orixás.
(*) ONILÉ = LITERALMENTE, DONA DE ILÊ, DONA DA TERRA. ORIXÁ FEMININO POUCO CONHECIDO NO BRASIL, HOMENAGEADO, CONTUDO, EM CANDOMBLÉS TRADICIONAIS DA BAHIA E CANDOMBLÉS AFRICANIZADOS, ESPECIALMENTE NO INÍCIO DO XIRÊ. TAMBÉM CHAMADA AIÊ.
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