Onilé
Onilé
é uma divindade feminina relacionada aos aspectos essenciais da natureza, e
originalmente exercia seu patronato sobre tudo o que se relaciona à apropriação
da natureza pelo homem, o que inclui a agricultura, a caça, a pesca e a própria
fertilidade.
Com as transformações da sociedade Yorubá numa sociedade
patriarcal ou patrilinear, que implicou a constituição de linhagens e clãs
familiares fundados e chefiados por antepassados masculinos, as mulheres
perderam o antigo poder que tiveram numa primeira etapa (um mito relata que,
numa disputa entre Oyá e Ogum, os homens teriam arrebatado o poder que era
antes de domínio das mulheres).
Os antepassados divinizados tomaram o lugar das
divindades primordiais e houve uma nova divisão de trabalho entre os Orixás.
As
divindades femininas antigas tiveram então seu culto reorganizado em torno de
entidades femininas genéricas, as Iyami Oxorongás, consideradas bruxas
maléficas pelo fato de representarem sempre um perigo para o poder masculino.
Vários Orixás tiveram divididas entre si as atribuições de zelar pela Terra: o
subsolo ficou para Olwuaye e para Ogum, o solo para Orixá Oko e Ogum, a
vegetação e a caça para os Odés e Ossanha e assim por diante.
A fertilidade das
mulheres foi o atributo que restou às divindades femininas, já que é a mulher
quem dá a luz, que reproduz e dá continuidade à vida.
Constituiriam-se elas
então em Orixás dos rios, representando a própria água, que fertiliza a terra e
permite a vida: são as Yabás Oxum, Yemanjá, Obá, Oyá, Ewá e também Nanã, que
como antiga divindade da terra, representa a lama do fundo do rio, simbolizando
a fertilização da terra pela água.
Onilé
teve seu culto preservado na África, mas perdendo muitas das antigas
atribuições.
Hoje ela representa nossa ligação elemental com o planeta em que
vivemos, nossa origem primitiva.
É a base de sustenção da vida, é o nosso mundo
material. Embora sua importância seja crucial do ponto de vista da concepção
religiosa de universo, os devotos a ela pouco recorrem, pois seu culto não
trata de aspectos particulares do mundo e da vida cotidiana, preferindo cada um
dirigir-se aos Orixás que cuidam desses aspectos específicos.
Na Nigéria
mantém-se viva a ideia de que Onilé é a base de toda a vida, tanto que, quando
se faz um juramento, jura-se por Onilé.
Nessas ocasiões, é ainda costume pôr na
boca alguns grãos de terra, às vezes dissolvida na água que se bebe para selar
o juramento, para lembrar que tudo começa com Onilé, a Terra Mãe, tanto na vida
como na morte.
Um
mito ensina qual é a atribuição principal de Onilé, como ela está associada ao
chão que pisamos e sobre o qual vivemos, nosso mundo material.
Assim conta o
mito:
Onilé
era a filha mais recatada e discreta de Olodumaré.
Vivia trancada na casa do
pai e quase ninguém a via. Quase nem se sabia de sua existência.
Quando os
Orixás, seus irmãos se reuniam no palácio do grande Pai para as grandes
audiências, em que Olodumaré comunicava suas decisões, Onilé fazia um buraco no
chão e se escondia, pois sabia que as reuniões sempre terminavam em festa, com
muita música e dança ao ritmo dos atabaques.
Onilé não se sentia bem no meio
dos outros.
Um dia o grande deus mandou os seus arautos avisarem: haveria uma
grande reunião no palácio e os Orixás deviam comparecer ricamente vestidos,
pois ele iria distribuir entre os filhos as riquezas do mundo e depois haveria
muita comida, música e dança.
Por todos os lugares os mensageiros gritaram esta
ordem e todos se prepararam com esmero para o grande acontecimento.
Quando
chegou por fim o grande dia, cada Orixá dirigiu-se ao palácio na maior
ostentação, cada um mais belamente vestido do que o outro, pois este era o
desejo de Olodumaré.
Yemanjá chegou vestida com a espuma do mar, os braços
ornados de pulseiras de algas marinhas, a cabeça cingida por um diadema de
corais e pérolas e o pescoço emoldurado por uma cascata de madrepérolas.
Oxóssi
escolheu uma túnica de ramos macios, enfeitada de peles e plumas dos mais
exóticos animais.
Ossanha vestiu-se com um manto de folhas perfumadas.
Ogum
preferiu uma couraça de aço brilhante, enfeitada com tenras folhas de palmeira.
Oxum escolheu cobrir-se de ouro, trazendo nos cabelos as águas verdes dos rios.
As roupas de Oxumaré mostravam todas as cores, trazendo nas mãos os pingos
frescos da chuva.
Iansã escolheu para vestir-se um sibilante vento e adornou os
cabelos com raios que colheu da tempestade.
Xangô não deixou por menos e
cobriu-se com o trovão.
Oxalá trazia o corpo envolto em fibras alvíssimas de
algodão e a testa ostentando uma nobre pena vermelha de papagaio. E assim por
diante.
Não
houve quem não usasse toda a criatividade para apresentar-se ao grande pai com
a roupa mais bonita.
Nunca se vira antes tanta ostentação, tanta beleza, tanto
luxo.
Cada Orixá que chegava ao palácio de Olodumaré provocava um clamor de admiração,
que se ouvia por todas as terras existentes. Os Orixás encantaram o mundo com
suas vestes. Menos Onilé.
Onilé
não se preocupou em vestir-se bem, não se interessou por nada, não se mostrou
para ninguém e recolheu-se a uma funda cova que cavou no chão.
Quando todos os
Orixás haviam chegado, Olodumaré mandou que fossem acomodados confortavelmente,
sentados em esteiras dispostas ao redor do trono.
Ele disse então à assembléia
que todos eram bem vindos. Que todos os filhos haviam cumprido seu desejo e que
estavam tão bonitos que ele não saberia escolher entre eles qual seria o mais
vistoso e belo.
Tinha todas as riquezas do mundo para dar a eles, mas nem sabia
como começar a distribuição.
Então Olodumaré disse que os próprios filhos, ao
escolherem o que achavam o melhor da natureza, para com aquela riqueza se
apresentar perante o pai, eles mesmos já tinham feito a divisão do mundo.
Então
Yemanjá ficava com o mar.
Oxum com o ouro e os rios.
A Oxóssi deu as matas e
todos os seus bichos.
Reservando as folhas para Ossanha.
Deu à Iansã os raios e
a Xangô o trovão.
Fez Oxalá dono de tudo que é branco e puro, de tudo que é o
princípio, deu-lhe a criação.
Destinou a Oxumaré o arco íris e a chuva.
A Ogum
deu o ferro e tudo o que se faz com ele, inclusive a guerra.
E assim por
diante.
Deu a cada Orixá um pedaço do mundo, uma parte da natureza, um
governo particular.
Dividiu de acordo com o gosto de cada um.
E disse que a
partir de então, cada um seria o dono e governador daquela parte da natureza.
Assim, sempre que um humano tivesse alguma necessidade relacionada com uma
daquelas partes da natureza, deveria dar uma oferenda ao Orixá que a possuísse.
Pagaria em oferendas de comida, bebida ou outra coisa que fosse da predileção
do Orixá.
Os Orixás, que tudo ouviram em silêncio, começaram a gritar e a
dançar de alegria, fazendo um grande alarido na corte.
Olodumaré pediu
silêncio, ainda não havia terminado.
Disse que faltava ainda a mais importante
das atribuições.
Que era preciso dar a um dos filhos o governo da Terra, o
mundo no qual os humanos viviam e onde produziam as comidas, bebidas e tudo o
mais que deveriam ofertar aos Orixás.
Disse que dava a Terra a quem se vestia
da própria Terra.
Quem seria?
Perguntavam-se todos?
"Onilé",
respondeu Olodumaré.
"Onilé?"
todos se espantaram. Como, se ela nem
sequer viera à grande reunião?
Nenhum dos presentes a vira até então.
Nenhum
sequer notara sua ausência.
"Pois Onilé está entre nós", disse
Olodumaré e mandou que todos olhassem no fundo da cova, onde se abrigava,
vestida de terra, a discreta e recatada filha.
Ali estava Onilé, em sua roupa
de terra.
Onilé, a que também foi chamada de Ilê, a casa, o planeta.
Olodumaré
disse que cada um que habitava a Terra pagasse tributo a Onilé, pois ela era a
Mãe de todos, o abrigo, a casa.
A humanidade não sobreviveria sem Onilé.
Afinal, onde ficava cada uma das riquezas que Olodumaré partilhara entre seus
filhos Orixás?
"Tudo está na Terra", disse Olodumaré.
"O mar e
os rios, o ferro e o ouro, os animais e as plantas, tudo", continuou.
"Até mesmo o ar e o vento, a chuva e o arco íris, tudo existe porque a
Terra existe, assim como as coisas criadas para controlar os homens e os outros
seres vivos que habitam o planeta, como a vida, a saúde, a doença e mesmo a
morte".
Pois então, que cada um pagasse tributo a Onilé, foi a sentença
final de Olodumaré.
Onilé, Orixá da Terra, receberia mais presentes que os
outros, pois deveria ter oferendas dos vivos e dos mortos, pois na Terra também
repousam os corpos dos que já não vivem. Onilé, também chamada Aiê, a Terra,
deveria ser propiciada sempre, para que o mundo dos humanos nunca fosse
destruído.
Todos os presentes aplaudiram as palavras de Olodumaré.
Todos os
Orixás aclamaram Onilé.
Todos os humanos propiciaram a mãe Terra.
E então
Olodumaré retirou-se do mundo para sempre e deixou o governo de tudo por conta
de seus filhos.
Assim, este mito de modo didático e com muita beleza, situa o
papel de Onilé no panteão dos deuses Yorubás.
Como é estrutural nos mitos, o
tempo da narrativa não é histórico, dando a impressão de que os cultos dos
diferentes Orixás foram instituídos a um só tempo, num só ato do supremo Deus.
A narrativa enfatiza, contudo, a concepção básica da religião dos Orixás, isto
é, que cada Orixá é um aspecto da natureza, uma dimensão particular do mundo em
que vivemos.
Eles são o próprio mundo, com suas forças, elementos, energias e
propriedades.
Mundo este que tem por base Onilé, a Terra, o planeta que
habitamos, o nosso lar no universo.
Na África Yorubá, Onilé ocupa lugar central
no culto da sociedade masculina secreta Ogboni.
Louvar Onilé é celebrar as
origens.
Por isso, quando aparecem junto aos humanos, os antepassados egunguns
saúdam Onilé, lembrando-nos que ela é anterior a tudo, mesmo às linhagens mais
antigas da humanidade.
Onilé é assentada num montículo de terra vermelha, que
representa o coração da Terra, que é trazida de dentro do solo pelas formigas.
Há uma quartinha com água, pois não há vida na Terra desprovida de água.
A
quartinha dentro da terra simboliza que a água vem de dentro da Terra e que é
assim a primeira dádiva de Onilé.
A água
que jorra do solo, forma os regatos, rios, lagos e o próprio mar, de onde sobe
para as nuvens e se precipita em chuva, voltando ao solo e subsolo, num ciclo
permanente de propiciação da vida.
O assentamento é coberto com moedas e
búzios, que entre os antigos iorubanos era dinheiro, representando toda a
riqueza e prosperidade que está na Terra, que dela extraímos e na qual vivemos.
Vermelho e marrom, cores da terra, são as contas apropriadas para colares que
homenageiam Onilé.
Na África, os sacrifícios feitos a Onilé incluem caracóis,
aves fêmeas e tartarugas (Abimbola, 1977: 111).
No Brasil, a legislação pune
como crime inafiançável o sacrifício de animais ameaçados de extinção e, por
isso, a tartaruga é substituída pela cabra.
Aliás, matar um animal em extinção
seria uma ofensa imperdoável à Onilé, que é a própria natureza, a grande Mãe da
ecologia.
Além desses animais, dá-se para Onilé tudo o que a terra produz e que
o homem transforma:
Obis,
Orobôs e todas as demais frutas,
Inhame e outros
tubérculos,
Feijões,
Milho,
Favas,
Mel,
Dendê,
Sal,
Vinho e tudo mais que vem
da terra pela mão do homem.
Onilé, isto é, a Terra.
Tem muitos inimigos que a
exploram e podem destruí-la.
Para muitos seguidores da religião dos Orixás,
interessados em recuperar a relação Orixá-natureza, o culto de Onilé
representaria a preocupação com a preservação da própria humanidade e de tudo
que há em seu mundo.
Pois é Onilé quem guarda o planeta e tudo que há sobre
ele, protegendo o mundo em que vivemos e possibilitando a própria vida de tudo
o que vive: as plantas, os bichos e a humanidade.
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